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Discurso do Presidente da Federação da Rússia, Vladimir Putin, na reunião com a cúpula dirigente do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Moscovo, 14 de junho de 2024

Serguei Lavrov: Excelentíssimo Senhor Vladimir Vladimirovich,

É um grande gosto recebê-lo no Ministério dos Negócios Estrangeiros.

Permita-me que lhe dê, em nome de toda a nossa equipa, as boas-vindas à nossa mais uma reunião.

Gostaria de lhe expressar os meus sinceros agradecimentos pela sua inabalável atenção para com o nosso serviço diplomático. Isto diz respeito tanto às nossas atividades profissionais como às questões de dotar o Ministério e as nossas embaixadas e consulados gerais de todo o necessário para o bom cumprimento das missões que nos são confiadas.

Gostaria de mencionar os nossos colegas do Gabinete do Presidente, do Governo, da Assembleia Federal e dos órgãos de poder executivo que estão aqui presentes. Estamos empenhados em colaborar o mais estreitamente possível e em coordenar os nossos esforços na concretização da política externa única definida  pelo Presidente da Rússia. O seu rumo está consagrado no Conceito de Política Externa do nosso país. A redação mais recente do Conceito foi assinado por Vossa Excelência em março de 2023. Guiados pelas diretrizes estratégicas nele contidas, estamos a trabalhar de forma empenhada para reforçar as nossas posições no cenário internacional, para garantir a segurança e condições externas o mais favoráveis possível ao desenvolvimento.

Estamos a intensificar prioritariamente os nossos laços com os países da Maioria Mundial, do Sul Global e do Leste. Estamos, por conseguinte, a redistribuir os nossos recursos materiais e humanos e a coloca-los nas vertentes mais relevantes nas novas circunstâncias geopolíticas.

Gostaria ainda de referir que estamos a ajudar intensamente a Crimeia, as Repúblicas Populares de Donetsk e de Lugansk e as Regiões de Zaporojie e Kherson a estabelecer relações externas. Para o efeito, o Ministério dos Negócios Estrangeiros estabeleceu as suas missões em Donetsk e Lugansk e reforçou as capacidades da sua missão em Simferopol.

Estou confiante de que esta reunião permitirá concretizar todas as vertentes do nosso trabalho prático no cenário internacional.

Permita-me que lhe passe a palavra.

Vladimir Putin: Muito obrigado.

Caros colegas, boa tarde!

Tenho o grande prazer de saudar-vos e, no início da nossa reunião, da nossa conversa, gostaria de vos agradecer o vosso trabalho árduo em prol dos interesses da Rússia e do nosso povo.

Reunimo-nos num formato tão amplo em novembro de 2021. Desde então, muitos acontecimentos cruciais, sem exagero, importantes, tiveram lugar tanto no país como no mundo. Por isso, creio que é importante fazer o ponto da situação atual nos assuntos globais e regionais, bem como fixar ao Ministério dos Negócios Estrangeiros tarefas daí decorrentes. Todas elas estão subordinadas ao objetivo principal: criar condições para o desenvolvimento sustentável do nosso país, garantir a sua segurança e melhorar o bem-estar das famílias russas.

O trabalho nesta área, nas atuais realidades complexas e em rápida mudança, exige de todos nós uma concentração ainda maior de esforços, espírito de iniciativa, perseverança, capacidade não só de responder aos desafios atuais, mas também de formar a nossa própria agenda, agenda essa que seja a longo prazo, de propor, em conjunto com os nossos parceiros em discussões abertas e construtivas, soluções para as questões fundamentais que preocupam não só a nós, mas a toda a comunidade internacional.

Repito: o mundo está em rápida mudança. Nada será como antes na política global, nem na economia nem na concorrência tecnológica. Cada vez mais países estão a empenhar-se em reforçar a sua soberania, a sua autossuficiência e a sua identidade nacional e cultural. Os países do Sul e do Leste estão a entrar no primeiro plano, crescendo também o papel de África e da América Latina. Dissemos sempre, inclusive na época soviética, que estas regiões do mundo eram importantes. No entanto, hoje a dinâmica é muito diferente, o que se está a tornar visível. As transformações na Eurásia, onde toda uma série de projetos de integração de grande envergadura está a ser implementado de forma dinâmica, também estão a ganhar ritmo acelerado.

É com base na nova realidade política e económica que se formam hoje os contornos de uma ordem mundial multipolar e multilateral, sendo este um processo objetivo que reflete a diversidade cultural e civilizacional que, apesar de todas as tentativas de unificação artificial, é organicamente inerente ao ser humano.

Estas mudanças profundas e sistémicas inspiram certamente otimismo e esperança, porque a implantação dos princípios da multipolaridade e do multilateralismo nos assuntos internacionais, incluindo o respeito pelo direito internacional e a ampla representatividade, permitem resolver em conjunto os problemas mais complexos para o bem comum, ter relações mutuamente benéficas e a cooperação entre Estados soberanos no interesse do bem-estar e da segurança dos povos.

Esta visão do futuro corresponde às aspirações da maioria absoluta dos países do mundo. Vemos isso, entre outras coisas, pelo crescente interesse pelo trabalho de uma associação universal como o BRICS, baseada numa cultura especial de diálogo confiante, igualdade soberana dos participantes e respeito mútuo. No âmbito da Presidência russa deste ano, facilitaremos a inclusão gradual dos novos membros do BRICS nas suas  estruturas de trabalho.

Peço ao Governo e ao Ministério dos Negócios Estrangeiros que dêem continuidade  ao seu trabalho, rico de conteúdo, e ao diálogo com os nossos parceiros, a fim de chegarmos à cimeira do BRICS a realizar em Kazan em outubro próximo, com um conjunto substancial de decisões acordadas que definirão o vetor da nossa cooperação em matéria de política e segurança, economia e finanças, ciência, cultura, desporto e laços humanitários.

De modo geral, acredito que o potencial do BRICS lhe permitirá tornar-se, com o tempo, uma das principais instituições reguladoras da ordem mundial multipolar.

A este respeito, gostaria de referir que o debate internacional sobre os parâmetros de interação entre Estados num mundo multipolar e sobre a democratização de todo o sistema de relações internacionais já está, certamente, em curso. Por exemplo, já chegámos a acordo, com os nossos colegas da Comunidade de Estados Independentes, e aprovámos um documento conjunto sobre as relações internacionais num mundo multipolar. Convidámos os nossos parceiros a falar sobre este assunto noutros fóruns internacionais, principalmente na OCX e no BRICS.

Estamos interessados em fazer com que este diálogo prossiga de forma intensa nas Nações Unidas e abranja, entre outras coisas, um tema tão básico e vital para todos como a criação de um sistema de segurança indivisível. Por outras palavras, a afirmação nos assuntos mundiais do princípio de que a segurança de alguns não pode ser garantida à custa da segurança de outros.

Gostaria de recordar, a este respeito, que, no final do século XX, após o fim de um grave confronto militar-ideológico, a comunidade mundial teve uma oportunidade única de construir uma ordem fiável e mais justa no domínio de segurança. Para isso não se necessitava de muita coisa: só era necessário saber-se ouvir as opiniões de todas as partes interessadas e dispor-se a tê-las em conta. O nosso país estava determinado a fazer exatamente esse tipo de trabalho construtivo.

No entanto, prevaleceu uma abordagem diferente. As potências ocidentais, lideradas pelos Estados Unidos, decidiram ter vencido a Guerra Fria, pelo que estavam com o direito de determinar por si próprias a forma como o mundo deveria ser organizado. Na prática, esta visão traduziu-se no alargamento, não limitado no espaço nem no tempo, da Aliança do Atlântico Norte, embora houvesse, evidentemente, outras ideias de como garantir a segurança na Europa.

As nossas perguntas justas foram respondidas com as teses de que ninguém iria atacar a Rússia e que a expansão da NATO não era dirigida contra a Rússia. As promessas feitas à União Soviética e depois à Rússia nos finais dos anos 80, princípios de 90 de que a Aliança não admitiria novos membros foram esquecidas. E se alguém se lembrava delas, dizia troçando que as promessas tinham sido feitas verbalmente não sendo, portanto, vinculativas.

Tanto nos anos 90 como nos anos subsequentes, afirmámos que as elites do Ocidente optaram pelo caminho errado, não nos limitámos a criticar e a alertar, mas propomos opções e soluções construtivas, sublinhando ser importante elaborar um mecanismo para a segurança europeia e mundial que fosse aceitável para todos - quero sublinhar - para todos. Serão necessários vários parágrafos para citar as iniciativas apresentadas pela Rússia nesses anos.

Basta recordar, pelo menos, a ideia de um tratado sobre a segurança europeia, que avançámos em 2008. Os mesmos temas foram abordados no memorando do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia, que foi entregue aos Estados Unidos e à NATO em dezembro de 2021.

No entanto, todas as nossas tentativas, que foram numerosas e que  não consigo enumerar todas, de chamar à razão os nossos interlocutores, todas as nossas explicações, exortações, avisos e pedidos não tiveram resposta. Os países ocidentais, convencidos não tanto de terem razão como de serem fortes e capazes de impor ao resto do mundo o que quisessem, ignoraram simplesmente outras opiniões. Na melhor das hipóteses, propunham discutirmos questões de importância secundária que, de facto, não resolviam nada, ou temas que só eram do interesse do Ocidente.

Entretanto, tornou-se rapidamente claro que o esquema ocidental proclamado como o único correto para garantir a segurança e a prosperidade na Europa e no resto do mundo não estava a funcionar. Recorde-se a tragédia nos Balcãs. Os problemas internos, que existiam certamente na antiga Jugoslávia, foram fortemente exacerbados após uma grosseira interferência externa. Já naquela  altura, o princípio fundamental da diplomacia ao estilo da NATO, perverso e impotente na resolução de conflitos internos complexos, mostrou-se em toda a sua glória: acusar uma das partes, que, por alguma razão, não lhes agradava, de todos os pecados e lançar contra ela toda a sua pujança política, mediática e militar, sanções económicas e restrições.

Como sabemos muito bem, posteriormente, princípios semelhantes foram aplicados noutras regiões do mundo: Iraque, Síria, Líbia, Afeganistão, etc.. Em todos os lugares só provocaram o agravamento dos problemas existentes, a destruição do destino de milhões de pessoas, a destruição de Estados inteiros, a expansão de catástrofes humanitárias e sociais e a criação de enclaves terroristas. De facto, nenhum país do mundo está imune a completar esta triste lista.

Atualmente, o Ocidente está a tentar meter-se impudentemente nos assuntos do Médio Oriente. Em tempos, monopolizaram esta vertente, hoje o resultado é claro e óbvio. O Sul do Cáucaso, a Ásia Central. Há dois anos, a cimeira da NATO em Madrid anunciou que a Aliança passaria a ocupar-se de questões da segurança não só na região euroatlântica, mas também na Ásia-Pacífico a pretexto de os de lá não poderem passar sem eles. Obviamente, por detrás disto estava uma tentativa de aumentar a pressão sobre os países da região cujo desenvolvimento decidiram conter. Como é sabido, o nosso país, a Rússia, está no topo desta lista.

Gostaria também de recordar que foi Washington que rompeu a estabilidade estratégica ao retirar-se unilateralmente dos tratados sobre defesa antimíssil, sobre a eliminação de mísseis de médio e curto alcance e sobre o céu aberto, e que, juntamente com os seus satélites da NATO, destruiu o sistema de medidas de confiança e controlo de armas construído na Europa ao longo de décadas.

Em última análise, o egoísmo e a arrogância dos países ocidentais causaram a atual situação extremamente perigosa. Chegámos inaceitavelmente perto do ponto de não retorno. Os apelos para infligir uma derrota estratégica à Rússia, país que possui o maior arsenal de armas nucleares, demonstram o extremo aventureirismo dos políticos ocidentais. Ou não compreendem a dimensão da ameaça que eles próprios estão a criar ou estão simplesmente obcecados em crer na sua impunidade e no seu excepcionalismo. Ambas as situações podem vir a causar uma tragédia.

É óbvio que estamos a assistir ao colapso do sistema de segurança euroatlântica. Atualmente, este simplesmente não existe. Tem de ser criado praticamente de novo. Tudo isto exige que elaboremos, juntamente com os nossos parceiros, com todos os países interessados, que são muitos, as nossas opções de segurança na Eurásia e as submetamos à consulta internacional.

Foi exatamente esta meta que foi formulada no discurso presidencial à Assembleia Federal. Trata-se de formular, num futuro próximo, um quadro de segurança igual e indivisível, de cooperação e desenvolvimento mutuamente benéficos e equitativos no continente euro-asiático.

O que deve ser feito para o efeito e que princípios devem servir de base?

Em primeiro lugar, temos de entabular um diálogo com todos os potenciais integrantes do futuro sistema de segurança. Para começar, gostaria de vos pedir que tratassem as questões necessárias com os países que estão abertos a uma cooperação construtiva com a Rússia.

Durante a nossa recente visita à República Popular da China, debatemos estas questões com o Presidente chinês, Xi Jinping. Registámos que a proposta russa não ia contra, mas, pelo contrário, complementava e se harmonizava completamente com os princípios básicos da iniciativa de segurança global da China.

Em segundo lugar, é importante partirmos da premissa de que a futura arquitetura de segurança está aberta a todos os países da Eurásia que desejem participar na sua criação. "A todos" significa que está aberta também aos países europeus e da NATO, sem dúvida. Vivemos num mesmo continente, não podemos mudar de geografia, aconteça o que acontecer, teremos de coexistir e trabalhar juntos, de uma forma ou de outra.

Atualmente, as relações da Rússia com a UE e com alguns países europeus degradaram-se, e não por nossa culpa, já o sublinhei muitas vezes. A campanha de propaganda antirrussa que envolve figuras europeias muito importantes é acompanhada de especulações de que a Rússia vai, alegadamente, atacar a Europa. Já falei sobre este assunto muitas vezes, e não há necessidade de o repetir muitas vezes nesta sala: todos compreendemos que é um perfeito disparate que só serve para justificar uma corrida aos armamentos.

A este respeito, vou permitir-me uma pequena divagação. Não é da Rússia que vem o perigo para a Europa. A principal ameaça para os europeus é a sua  dependência crítica, quase total, que se torna cada vez maior,  dos Estados Unidos: nos domínios militar, político, tecnológico, ideológico e mediático. A Europa está a ser cada vez mais empurrada para as margens do desenvolvimento económico global, mergulhada no caos dos problemas da migração e de outros problemas graves, e privada da sua subjetividade internacional e da sua identidade cultural.

Por vezes, parece que os políticos europeus que estão no poder e os representantes da burocracia europeia temem mais desagradar a Washington do que perder a confiança do seu próprio povo, dos seus próprios cidadãos. A comprová-lo estão também as recentes eleições para o Parlamento Europeu. Os políticos europeus engolem humilhações, grosserias e escândalos com a vigilância dos líderes europeus, enquanto os Estados Unidos simplesmente os usam nos seus próprios interesses: ou obrigam-nos a comprar o seu gás caro – a propósito, o gás é três ou quatro vezes mais caro na Europa do que nos EUA, ou, como agora, por exemplo, exigem que os países europeus aumentem os fornecimentos de armas à  Ucrânia. A propósito, não deixam de exigir ou uma coisa ou outra, impondo sanções contra eles, contra os operadores econômicos na Europa. Fazem-no sem nenhum constrangimento.

Agora estão a obriga-los a aumentar os fornecimentos de armas à Ucrânia e a expandir as suas capacidade de produção de projéteis de artilharia. Mas quem é que vai precisar destes projéteis quando o conflito na Ucrânia acabar? Como é que isto pode garantir a segurança militar da Europa? Não está claro. Os próprios EUA estão a investir em tecnologias militares, e nas tecnologias do futuro: nas atividades espaciais, em drones modernos, em sistemas de ataque baseados em novos princípios físicos, ou seja, nas áreas que, no futuro, determinarão a natureza da luta armada e, portanto, o potencial militar e político das potências e as suas posições no mundo, reservando aos países europeus o seguinte papel: invistam o seu dinheiro nos projetos que são do nosso interesse. No entanto, isso não aumenta nenhum potencial europeu. Que façam o que quiserem, são os seus afazeres. Isso pode ser bom para nós, mas de fato a situação é esta.

Se a Europa quiser manter-se como um dos centros independentes de desenvolvimento mundial e pólo cultural e civilizacional do planeta, precisa certamente de manter boas relações com a Rússia, e nós estamos prontos para isso.

Esta coisa realmente simples e óbvia foi muito bem compreendida pelos políticos de quilate pan-europeu e mundial, patriotas dos seus países e povos, que pensavam em categorias históricas, e não por atores de fundo que seguem a vontade e orientações dadas por outras pessoas. Charles de Gaulle falou muito sobre isso no pós-guerra. Também me lembro bem de como, em 1991, numa conversa em que tive a oportunidade de participar pessoalmente, o Chanceler alemão, Helmut Kohl, sublinhou a importância da parceria entre a Europa e a Rússia. Espero que, mais cedo ou mais tarde, as novas gerações de políticos europeus venham a retomar este legado.

Quanto aos Estados Unidos, as tentativas contínuas das elites liberais-globalistas, que hoje estão ali no poder, de difundir a sua ideologia a todo o mundo por todos os meios possíveis, preservar o seu estatuto imperial e o seu domínio, estão a drenar cada vez mais o país, a  levá-lo à degradação, e estão em clara contradição com os interesses genuínos do povo norte-americano. Se não fosse este caminho sem saída, o seu messianismo agressivo, misturado com a sua confiança de que são eleitos e excepcionais, as relações internacionais já teriam sido estabilizadas há muito tempo.

Terceiro. A fim de promover a ideia de um sistema de segurança euro-asiática, é necessário intensificar significativamente o processo de diálogo entre as organizações multilaterais que já funcionam na Eurásia. Trata-se sobretudo do Estado-União, da Organização do Tratado de Segurança Coletiva, da União Económica Eurasiática, da Comunidade de Estados Independentes e da Organização de Cooperação de Xangai.

A perspectiva está em fazer com que outras associações eurasiáticas influentes, do Sudeste Asiático ao Médio Oriente, se juntem a estes processos.

Quarto. Consideramos que chegou a hora de iniciar um amplo debate sobre um novo sistema de garantias bilaterais e multilaterais de segurança coletiva na Eurásia. Ao mesmo tempo, é preciso levar as coisas no sentido de acabar gradualmente com a presença militar de potências externas na região euro-asiática.

Estamos conscientes de que, nestas circunstâncias, esta tese pode parecer irrealista, mas é só agora. Se construirmos um sistema de segurança fiável no futuro, não haverá necessidade da presença de contingentes militares extra-regionais. De facto, para ser franco, hoje também não há necessidade disso – trata-se de uma ocupação, nada mais.

Em última análise, pensamos que devem ser os países e as  estruturas regionais da Eurásia a identificar áreas específicas de cooperação em matéria de segurança conjunta. Devem ser eles próprios a construir um sistema de instituições, mecanismos e acordos funcionais que sirvam efetivamente para o alcance dos objetivos comuns de estabilidade e desenvolvimento.

Neste contexto, apoiamos a iniciativa dos nossos amigos bielorrussos de elaborar um documento programático - uma carta sobre a multipolaridade e a diversidade no século XXI. Este documento poderia estipular não só os princípios-quadro da arquitetura euro-asiática baseada nas normas fundamentais do direito internacional, mas também, num sentido mais lato, uma visão estratégica da essência e da natureza da multipolaridade e do multilateralismo como novo sistema de relações internacionais que está a substituir o mundo centrado no Ocidente. Considero isso importante e solicito que trabalhem cuidadosamente nesse documento com os nossos parceiros e todos os países interessados. Devo acrescentar que, ao discutir questões tão complexas e multidisciplinares, precisamos, naturalmente, de uma representação máxima e alargada e da consideração de diferentes abordagens e posições.

Quinto. Uma parte importante do sistema de segurança e desenvolvimento euro-asiático deve ser, sem dúvida, as questões económicas, o bem-estar social, a integração e a cooperação mutuamente benéfica, a solução  de problemas comuns como a superação da pobreza, da desigualdade, o clima, o ambiente, a elaboração de mecanismos para responder às ameaças de pandemias e crises na economia global – todos os aspectos são importantes.

O Ocidente, através das suas ações, não só rompeu a estabilidade militar e política no mundo, como também, através de sanções e guerras comerciais, desacreditou e enfraqueceu as principais instituições de mercado. Ao utilizar o FMI e o Banco Mundial, ao distorcer a agenda climática, está a travar o desenvolvimento do Sul global. Perdendo a concorrência, jogando pelas regras que escreveu para si próprio, o Ocidente recorre a barreiras proibitivas e a todo o tipo de protecionismo. Por exemplo, os EUA abandonaram efetivamente a Organização Mundial do Comércio como instituição  reguladora do comércio internacional. Tudo está bloqueado. E exercem pressão não só sobre os seus concorrentes, mas também sobre os seus satélites. Basta ver como estão agora a "sugar o sumo" das economias europeias, que se equilibram à beira da recessão.

Os países ocidentais congelaram parte dos ativos e das reservas em divisa da Rússia. Agora, estão a pensar em como criar uma base legal para se apoderar deles. No entanto, apesar de todas as chicanices, roubo é roubo e não ficará impune.

A questão é ainda mais profunda. Ao roubarem os ativos russos, darão mais um passo rumo à destruição do sistema que eles próprios criaram e que, durante muitas décadas, lhes garantiu a prosperidade, permitindo-lhes consumir mais do que ganhavam e atrair dinheiro de todo o mundo através de dívidas e passivos. Agora todos os países, empresas e fundos soberanos estão a ver claramente que os seus ativos e reservas estão longe de estar protegidos - tanto do ponto de vista jurídico como económico, podendo qualquer um deles ser o próximo da fila da expropriação realizada pelos EUA e pelo Ocidente.

Desde já cresce a desconfiança em relação ao sistema financeiro baseado nas moedas de reserva ocidentais. Verifica-se a retirada de fundos de títulos de valores e de dívida dos países ocidentais, bem como de alguns bancos europeus, que, ainda há pouco tempo, eram considerados fiáveis para o depósito de capitais. Agora estão a retirar-lhes ouro. E estão a fazer bem.

Penso que temos de intensificar muito a criação de mecanismos económicos externos bilaterais e multilaterais eficazes e seguros, alternativos aos controlados pelo Ocidente. Isto inclui a expansão das transações em moedas nacionais, a criação de sistemas de pagamento independentes e a construção de cadeias de fornecimento que contornem os canais bloqueados ou comprometidos pelo Ocidente.

É evidentemente necessário prosseguir os esforços para desenvolver corredores de transporte internacionais na Eurásia, um continente do qual a Rússia é o núcleo geográfico natural.

Peço ao Ministério dos Negócios Estrangeiros para contribuir o mais possível para a elaboração de acordos internacionais em todas estas áreas. Estes acordos são extremamente importantes para o reforço da cooperação económica do nosso país e dos nossos parceiros. Isto deveria dar um novo impulso à construção de uma grande parceria euro-asiática, que, de facto, poderia tornar-se uma base socioeconómica para um novo sistema de segurança indivisível na Europa.

Caros colegas, o objetivo das nossas propostas é criar um sistema no seio do qual todos os Estados estejam confiantes na sua segurança. Nessa altura, aliás, poderemos tentar resolver de forma diferente e  verdadeiramente construtiva os numerosos conflitos existentes. Os problemas da falta de segurança e de confiança mútua atingem não só o continente euro-asiático; a tensão crescente pode ser observada em todas as regiões. Vemos constantemente como o mundo está interligado e interdependente, sendo a crise ucraniana, cujas consequências reverberam por todo o planeta um exemplo trágico para todos nós.

Mas quero dizer desde já: a crise da Ucrânia não é um conflito entre dois países e muito menos entre dois povos, causado por alguns problemas entre eles. Se fosse esse o caso, não há dúvida de que os russos e os ucranianos, que partilham uma história e uma cultura comuns, valores espirituais comuns, possuem milhões de laços de parentesco, familiares e humanos, teriam encontrado uma forma de resolver de modo justo quaisquer questões e desacordos.

No entanto, não é esse o caso: as raízes do conflito não estão nas relações bilaterais. Os acontecimentos na Ucrânia são um resultado direto da evolução mundial e europeia do final do século XX, início do século XXI, da política agressiva e descarada e absolutamente aventureira seguida pelo Ocidente durante todos estes anos, muito antes do início da operação militar especial.

As elites dos países ocidentais, como já referi hoje, após o fim da Guerra Fria, optaram por dar continuidade à reestruturação geopolítica do mundo, por criar e impor a famigerada ordem baseada em regras, na qual não se enquadram países fortes, soberanos e autossuficientes.

Daí a política de contenção do nosso país. Os objetivos desta política são já abertamente declarados por alguns políticos dos EUA e da Europa. Hoje falam da chamada descolonização da Rússia. De facto, trata-se de uma tentativa de criar uma base ideológica para a desagregação da nossa Pátria por razões étnicas. De facto, há muito tempo que se fala da desagregação da União Soviética e da Rússia. Todos os presentes nesta sala estão bem cientes disso.

Empenhados em concretizar esta estratégia, os países ocidentais optaram por absorver e explorar política e militarmente os territórios que nos são próximos. Houve cinco e agora seis vagas de expansão da NATO. Tentaram transformar a Ucrânia na sua cabeça de ponte e torná-la "anti-Rússia". Para atingir estes objetivos, investiram dinheiro e recursos, compraram políticos e partidos inteiros, reescreveram a história e os programas educativos, patrocinaram e cultivaram grupos de neonazis e radicais. Fizeram tudo para minar os nossos laços interestatais, para dividir e colocar os nossos povos um contra o outro.

A região sudeste da Ucrânia composta pelos territórios que fizeram parte da grande Rússia histórica durante séculos não permitiu concretizar essa política descarada nas suas terras. Viviam ali, e ainda vivem, pessoas que, mesmo depois da declaração de independência da Ucrânia em 1991, eram a favor de relações boas e mais estreitas com o nosso país, tanto russos como ucranianos, representantes de diferentes etnias, que estavam unidos pela língua, cultura, tradições e memória histórica russas.

Os presidentes e políticos ucranianos de então que lutaram por este cargo tiveram de ter em conta a posição, a determinação, os interesses e os votos destas pessoas - milhões de pessoas. No entanto, após obter os seus votos, eles começaram  a manobrar, mentiram muito, falaram da chamada escolha europeia. No entanto, não se atreveram a romper completamente com a Rússia, porque a região  sudeste da Ucrânia tinha uma opinião diferente, e eles não podiam deixar de tê-la em conta. Esta ambivalência foi sempre inerente às autoridades ucranianas ao longo de todos os anos após o reconhecimento da independência.

O Ocidente, evidentemente, apercebeu-se disso. Via e compreendia os problemas que ali existiam e que podiam ser revitalizados, compreendia a força dissuasora da região sudeste, bem como o facto de que nenhuma propaganda ao longo de muitos anos podia alterar radicalmente a situação. Claro que muito foi feito, mas foi difícil alterar substancialmente a situação.

Não conseguiu distorcer a identidade histórica e a consciência da maioria da população do sudeste da Ucrânia, apagar nelas e nas gerações mais jovens uma boa atitude para com a Rússia e um sentido da nossa comunhão histórica. E foi por isso que decidiram usar novamente a força para subjugar a população do sudeste da Ucrânia e para ignorar a sua opinião. Para o efeito, organizaram, financiaram, prepararam e levaram a cabo um golpe de Estado armado, tirando partido das dificuldades e complexidades políticas internas da Ucrânia.

Uma onda de pogroms, violência e assassínios atingiu as cidades da Ucrânia. Os extremistas acabaram por tomar e usurpar o poder em Kiev. Os seus slogans nacionalistas agressivos, incluindo os apelos à reabilitação de capangas nazis, foram elevados à categoria de ideologia de Estado. Foi proclamada a abolição da língua russa nas esferas estatal e pública, aumentou a pressão sobre os crentes ortodoxos e a interferência nos assuntos da igreja, o que resultou, no final de contas, num cisma. Ninguém parecia aperceber-se desta interferência, como se isso fosse uma coisa normal. Tentem fazer algo semelhante noutro país qualquer, haverá tantos gritos que terão os seus ouvidos estourados. No entanto, ali (na Ucrânia) era admissível fazê-lo porque tudo isso era direcionado contra a Rússia.

Milhões de pessoas na Ucrânia, principalmente nas regiões leste, não aceitaram o golpe, como sabemos. Como resultado, tornaram-se alvo de ameaças de represálias e terror. Em primeiro lugar, o novo governo de Kiev começou a preparar um ataque contra a Crimeia, região russófona, que, em 1954, como sabem, fora  retirada da República Socialista Federativa da Rússia (república federada da URSS) e entregue à Ucrânia, em violação de todas as normas e procedimentos legais vigentes, na altura, na União Soviética. Nestas circunstâncias, não podíamos, é claro, abandonar e deixar desprotegidos os habitantes da Crimeia e de Sebastopol. Eles fizeram a sua escolha e, em março de 2014, como sabem, ocorreu a reunificação histórica da Crimeia e de Sebastopol com a Rússia.

O regime de Kiev e grupos nacionalistas começaram a reprimir as manifestações pacíficas contra o golpe de Estado em  Kharkov, Kherson, Odessa, Zaporojie, Donetsk, Lugansk e Mariupol, tendo desencadeado uma campanha de terror. Provavelmente não há necessidade de recordar, toda a gente se lembra bem do que aconteceu nestas regiões.

Em maio de 2014, foram realizados referendos sobre o estatuto das Repúblicas Populares de Donetsk e de Lugansk, nos quais a maioria absoluta da população se pronunciou a favor da independência e da soberania. Aí surge a pergunta: as pessoas poderiam ter expressado a sua vontade desta forma, poderiam ter declarado deste modo a sua independência? Todos os presentes nesta sala compreendem que podiam e tinham todo o direito e razão para o fazer, em conformidade com o direito internacional, incluindo o direito dos povos à autodeterminação. Não preciso de vos recordar, mas, uma vez que os meios de comunicação social estão aqui presentes, direi que o nº 2 do artigo 1º da Carta das Nações Unidas concede este direito.

A este respeito, gostaria de recordar o famigerado precedente do Kosovo. Em tempos, falámos dele muitas vezes, e agora volto a repetir. Este precedente foi criado pelos países ocidentais numa situação semelhante. Foi reconhecida como legítima a secessão, em 2008, do Kosovo da Sérvia. Seguiu-se a célebre decisão do Tribunal Internacional de Justiça das Nações Unidas, que, a 22 de julho de 2010, decretou, com base no artigo 1.º, n.º 2, da Carta das Nações Unidas, e passo a citar: "Nenhuma proibição geral de uma declaração unilateral de independência decorre da prática do Conselho de Segurança". E a seguinte citação: "O direito internacional geral não contém nenhuma proibição aplicável à declaração de independência". Mais do que isso: estava também lá escrito que as partes de um país, qualquer que fosse o seu tipo, que decidissem declarar a independência não eram obrigadas a dirigir-se aos órgãos centrais do seu antigo Estado. Tudo estava lá escrito, tudo estava escrito preto no branco, todos escreveram com a sua própria mão.

Então estas repúblicas – de Donetsk e de Lugansk - [tinham o direito] de declarar a sua independência? Claro que tinham. Esta questão não pode ser interpretada de um modo diferente.

O que é que o regime de Kiev fez nesta situação? Ignorou completamente a escolha do povo e desencadeou uma guerra de grande envergadura contra os novos países independentes - as repúblicas populares do Donbass - utilizando aviões, artilharia e tanques. Começou a bombardear cidades pacíficas e a praticar atos de intimidação. E o que é que aconteceu a seguir? Os habitantes do Donbass pegaram em armas para defender as suas vidas, as suas casas, os seus direitos e interesses legítimos.

No Ocidente veicula-se a tese de que a Rússia teria iniciado a guerra a título de operação militar especial, que seria um país agressor e que, por isso, seria  possível atacar o seu território, usando, entre outras coisas, sistemas de armas ocidentais, e que a Ucrânia estaria supostamente a defender-se e poderia, portanto,   fazê-lo.

Gostaria de sublinhar mais uma vez: não foi a Rússia que começou a guerra, foi o regime de Kiev que, repito, depois de os habitantes de parte da Ucrânia terem declarado a sua independência em conformidade com o direito internacional, que iniciou as hostilidades e que as continua. Isto, sim,  é uma agressão se não reconhecermos o direito destes povos que viviam nestes territórios de declarar a sua independência. O que é que é isso? É uma agressão. E aqueles que têm ajudado a máquina militar do regime de Kiev ao longo dos últimos anos são cúmplices do agressor.

Em 2014, os habitantes do Donbass não o aceitaram. As milícias mantiveram-se firmes, enfrentaram as unidades punitivas e expulsaram-nas de Donetsk e de Lugansk. Esperávamos que isso fizesse voltar à razão aqueles que desencadearam este massacre. Para pôr termo ao derramamento de sangue, a Rússia fez os apelos habituais - apelos a negociações, que começaram com a participação de Kiev e de representantes das repúblicas do Donbass, com a assistência da Rússia, da Alemanha e da França.

As negociações foram difíceis, mas, apesar disso, em 2015, foram celebrados os acordos de Minsk. Encarávamos a sério a sua aplicação e esperávamos conseguir resolver a situação no quadro do processo de paz e do direito internacional. Esperávamos que, em resultado, os interesses e exigências legítimos do Donbass fossem respeitados e o estatuto especial destas regiões e dos direitos fundamentais das pessoas que ali viviam fossem consagrados na Constituição, preservando-se simultaneamente a integridade territorial da Ucrânia. Estávamos prontos para isso, e estávamos prontos para persuadir as pessoas que viviam nesses territórios a resolver as questões desta forma, propondo-lhes vários compromissos e soluções.

Mas tudo acabou por ser rejeitado. O regime de Kiev pôs no lixo os acordos de Minsk. Como confessaram mais tarde os representantes da cúpula ucraniana, eles não estavam satisfeitos com nenhum dos artigos daqueles documentos, eles simplesmente mentiam-nos e iludiam-nos.

A ex-Chanceler da Alemanha e o ex-Presidente da França, que foram, de facto, coautores e, por assim dizer, garantes dos acordos de Minsk, mais tarde, também admitiram diretamente que não tinham planos para os implementar; apenas precisavam de desviar a atenção da situação em conversas ocas para ganharem tempo para criar unidades armadas ucranianas e fornecer-lhes armas e equipamento. "Trapacearam-nos”, enganaram-nos mais uma vez.

Em vez de um verdadeiro processo de paz, em vez de uma política de reintegração e reconciliação nacional de que Kiev gostava de falar, o Donbass foi bombardeado durante oito anos. O regime de Kiev cometia atos terroristas e assassinatos, pôs um bloqueio severo à região. Durante todos esses anos, os habitantes do Donbass (mulheres, crianças, idosos) foram declarados pessoas de "segunda categoria", "sub-humanos", dizendo-se-lhes que cada um deles seria submetido a represálias. O que é isto senão um genocídio no centro da Europa do século XXI? Enquanto isso, a Europa e os  EUA fingiram que nada estava a acontecer, ninguém se apercebia de nada.

Nos finais de 2021, princípios de 2022, o processo de Minsk foi encerrado por Kiev e os seus patrões ocidentais que planeavam um novo ataque maciço contra o Donbass. Um grande grupo de unidades armadas ucranianas estava a preparar-se para lançar uma nova ofensiva contra Lugansk e Donetsk e realizar limpezas étnicas, o que provocaria numerosas vítimas humanas e centenas de milhares de refugiados. Tínhamos a obrigação de evitar esta catástrofe e de proteger as pessoas; não podíamos tomar outra decisão.

A Rússia reconheceu finalmente as Repúblicas Populares de Donetsk e de Lugansk. Não as reconhecemos  durante oito anos, esperando que as partes chegassem a um acordo. O resultado é conhecido. A 21 de fevereiro de 2022, celebrámos com estas repúblicas, que reconhecemos, tratados de amizade, cooperação e ajuda mútua. Pergunta: as repúblicas populares tinham o direito de nos pedir apoio se reconhecêssemos a sua independência? E tínhamos o direito de reconhecer a sua independência, e eles tinham o direito de declarar a sua soberania, em conformidade com os artigos que mencionei e com as decisões do Tribunal Internacional de Justiça das Nações Unidas? Tinham o direito de declarar a sua  independência? Tinham. Mas se tinham esse direito e o utilizaram, então nós tínhamos o direito de firmar um tratado com elas - e fizemo-lo, e repito: em plena conformidade com o direito internacional e o disposto no artigo 51º da Carta das Nações Unidas.

Ao mesmo tempo, apelámos às autoridades de Kiev para que retirassem as suas tropas do Donbass. Posso dizer-vos que mantivemos contatos e que lhes dissemos imediatamente: retirem as vossas tropas de lá, e tudo acabará lá. Eles rejeitaram e simplesmente ignoraram a nossa proposta, apesar de esta proporcionar uma oportunidade real para solucionar esta questão de forma pacífica.

A 24 de fevereiro de 2022, a Rússia foi obrigada a anunciar o início de uma operação militar especial. Numa mensagem aos cidadãos da Rússia, aos habitantes das Repúblicas de Donetsk e de Lugansk e à sociedade ucraniana, fixei os objetivos desta operação - proteger a população do Donbass, restabelecer a paz, desmilitarizar e desnazificar a Ucrânia, afastando assim as ameaças do nosso país, e restabelecer o equilíbrio em matéria de segurança na Europa.

Ao mesmo tempo, continuámos a considerar prioritário que estes objetivos sejam alcançados por meios políticos e diplomáticos. Gostaria de recordar que, logo na primeira fase da operação militar especial, o nosso país aceitou negociar com representantes do regime de Kiev. As negociações tiveram lugar primeiro na Bielorrússia e depois na Turquia. Tentámos levar ao conhecimento da nossa contraparte a nossa mensagem principal: respeitem a escolha do Donbass e a vontade da sua população, retirem as vossas tropas e parem de bombardear cidades e aldeias pacíficas. Nada mais  era necessário, as outras questões poderiam ser tratadas posteriormente. A resposta deles foi: não, vamos lutar. É óbvio que esta foi a orientação recebida dos seus patrões ocidentais, também vou falar sobre isso.

Naquela altura, entre fevereiro e março de 2022, as nossas tropas, como é sabido, chegaram às portas de Kiev. Houve, na altura e há agora muita especulação sobre este assunto na Ucrânia e no Ocidente.

O que é que eu quero dizer sobre isto? As nossas tropas estiveram de facto às portas de Kiev. Os nossos militares e estruturas de segurança propunham várias opções de agir, mas nunca tivemos a decisão política de tomar de assalto uma cidade com três milhões de habitantes, não obstante o que se diga ou se especule.

De facto, não foi mais do que uma operação para coagir o regime ucraniano à paz. As tropas estavam lá para estimular o lado ucraniano a negociar, a procurar soluções aceitáveis e, assim, pôr fim à guerra desencadeada por Kiev contra o Donbass em 2014, a resolver questões que representavam uma ameaça para a segurança do nosso país, para a segurança da Rússia.

Por mais estranho que pareça, conseguimos chegar a acordos que, em princípio, convinham tanto a Moscovo como a Kiev. Estes acordos foram redigidos no papel e rubricados em Istambul pelo chefe da delegação ucraniana. Isto significa que as autoridades de Kiev estavam satisfeitas com esta solução.

O documento chamava-se “Tratado sobre Neutralidade Permanente e Garantias de Segurança para a Ucrânia”. Tinha um carácter de compromisso. Todavia, os seus pontos-chave estavam de acordo com as  nossas exigências fundamentais e resolviam, até mesmo no início da operação militar especial, as tarefas que tinham sido declaradas como principais e estavam relacionadas com a desmilitarização e a desnazificação da Ucrânia. Também nestas vertentes conseguimos encontrar soluções, eram complicadas, mas foram encontradas, a saber: pretendia-se que a Ucrânia aprovaria uma lei sobre a proibição da ideologia nazi sob quaisquer formas. Está lá tudo escrito.

Além disso, em troca de garantias internacionais de segurança, a Ucrânia limitaria as suas forças armadas, comprometer-se-ia a não aderir a alianças militares, a não permitir no seu território nacional bases militares nem contingentes de tropas estrangeiros e a não realizar exercícios militares no seu território. Tudo está redigido no papel.

Nós, da nossa parte, compreendendo as preocupações da Ucrânia em matéria de segurança, aceitámos que a Ucrânia, ao não aderir formalmente à NATO, recebesse garantias quase semelhantes às concedidas aos membros da Aliança. Esta decisão não foi fácil para nós, mas reconhecemos que as exigências da Ucrânia quanto à sua segurança eram legítimas e, em princípio, não nos opusemos à formulação proposta por Kiev. Estas são as formulações propostas por Kiev, compreendendo que o principal era pôr termo ao derramamento de sangue e à guerra no Donbass.

A 29 de março de 2022, retirámos as nossas tropas de Kiev porque nos foi assegurado que era necessário criar condições para a conclusão do processo de negociação. Também nos foi dito que nenhuma das partes deveria assinar estes acordos, como diziam os nossos colegas ocidentais, com uma arma encostada à cabeça. Muito bem, aceitámos também isso.

No entanto, no dia seguinte, logo após a retirada das tropas russas de Kiev, o lado ucraniano suspendeu a sua participação no processo de negociação, encenando uma provocação bem conhecida em Bucha, e rejeitou a versão ajustada dos acordos. Penso que é hoje claro por que razão foi necessária esta provocação suja - para explicar de alguma forma o motivo por que foram rejeitados os resultados alcançados nas negociações. O caminho para a paz foi novamente rejeitado.

Isto foi feito, como agora sabemos, a mando dos patrões ocidentais, entre os quais o ex-Primeiro-Ministro britânico. Durante a sua visita a Kiev, afirmou explicitamente: nada de acordos, precisamos de derrotar a Rússia no campo de batalha, para lhe infligir uma derrota estratégica. Depois disso, os ocidentais  começaram a encher a Ucrânia de armas e começaram a falar da necessidade de nos infligir, como acabei de vos recordar, uma derrota estratégica. Passado algum tempo, como é sobejamente sabido, o Presidente da Ucrânia emitiu um decreto em que proibiu os seus representantes e a si próprio de manter quaisquer negociações com Moscovo. Este episódio que envolve a nossa tentativa de resolver o problema por meios pacíficos mais uma vez não deu em nada.

A propósito, sobre o tema das negociações. Agora gostaria de tornar público mais um episódio nessa reunião. Não falei dele publicamente antes, mas alguns dos presentes sabem-no. Depois de o exército russo ter ocupado parte das regiões de Kherson e Zaporojie, muitos políticos ocidentais se ofereceram para mediar a busca de uma solução pacífica para o conflito. Um deles fez uma visita de trabalho a Moscovo a 5 de março de 2022. Nós aceitámos os seus esforços de mediação, especialmente porque ele referiu, durante a conversa, o facto de ter recebido o apoio dos líderes da Alemanha e da França e de altos representantes dos EUA.

Na reunião, o nosso visitante estrangeiro perguntou: (um episódio curioso): se estão a ajudar o Donbass, porque é que as tropas russas estão no sul da Ucrânia e nas Regiões de Kherson e de Zaporojie? A nossa resposta foi a de que esta foi a decisão do nosso Estado-Maior que planeou a operação. Hoje gostaria de acrescentar que o plano era contornar algumas das áreas fortificadas construídas em oito anos pelas autoridades ucranianas no Donbass, principalmente para libertar Mariupol.

Em seguida, o nosso colega estrangeiro perguntou - um bom profissional, tenho de lhe dar crédito: as vossas tropas vão permanecer nas Regiões de Kherson e de Zaporojie. E o que acontecerá a estas Regiões depois de os objetivos da operação militar especial serem alcançados? Respondi que, em geral, não excluía a preservação da soberania ucraniana sobre estes territórios desde que a Rússia tivesse uma forte ligação terrestre com a Crimeia.

Isto é, Kiev deve garantir a chamada servidão - um direito de acesso legalmente formalizado da Rússia à península da Crimeia através das Regiões de Kherson e de Zaporojie. Esta é uma decisão política crucial. E claro que, na sua versão final, não seria tomada por uma única pessoa, mas apenas após consultas com o Conselho de Segurança, com outras estruturas e, naturalmente, após consulta popular no nosso país e, acima de tudo, nas Regiões de Kherson e de Zaporojie.

No final de contas, foi isso que fizemos: consultámos a população e realizámos referendos. E fizemos o que as pessoas decidiram, incluindo nas Regiões de Kherson e de Zaporojie e nas Repúblicas Populares de Donetsk e de Lugansk.

Em março de 2022, o nosso parceiro de negociação disse-nos que iria deslocar-se a Kiev para continuar a conversa com os seus colegas na capital ucraniana. Congratulámo-nos com este facto, bem como com as tentativas de encontrar uma resolução pacífica para o conflito, porque cada dia de luta significava novas vítimas e perdas. No entanto, na Ucrânia, como viemos a saber mais tarde, o lado ucraniano não  aceitou os esforços de mediação do mediador ocidental. Pelo contrário, como viemos a saber, acusou-no, de forma bastante dura, de tomar posições pró-russas, mas isso já é um pormenor.

Atualmente, como já referi, a situação mudou dramaticamente. As populações das Regiões de Kherson e de Zaporojie expressaram a sua posição em referendos. Como resultado, as Regiões de Kherson e de Zaporojie tornaram-se parte da Federação da Rússia, bem como as Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk. E não se pode tratar da violação da nossa unidade estatal. A vontade dos povos de estar com a Rússia é inabalável. Esta questão está encerrada para sempre e não se discute mais.

Gostaria de repetir mais uma vez: foi o Ocidente que preparou e provocou a crise ucraniana, e agora está a fazer tudo para que esta se  prolongue indefinidamente, enfraquecendo e exasperando os povos da Rússia e da Ucrânia.

Estão a enviar à Ucrânia novos e novos lotes de armas e munições. Alguns políticos europeus começaram a falar da possibilidade de instalar os seus contingentes de tropas na Ucrânia. Ao mesmo tempo, como já assinalei, são os atuais e verdadeiros senhores da Ucrânia - que, infelizmente, não são o povo da Ucrânia, mas as elites globalistas do outro lado do oceano - que estão a tentar pôr sobre o executivo ucraniano o fardo de tomar decisões impopulares, incluindo a nova redução da idade para recrutamento.

Agora, como sabem, a idade de recrutamento é de 25 anos, podendo baixar na próxima etapa para 23, depois para 20, para 18 ou já nesta fase  para 18. E depois, claro, livrar-se-ão dos políticos que tomarão essas decisões impopulares sob pressão do Ocidente, expulsá-los-ão por inutilidade, deitando toda a responsabilidade para cima deles, e colocarão no seu lugar outras pessoas, também dependentes do Ocidente, mas ainda sem reputação tão manchada.

Daí, talvez, a ideia de cancelar as eleições presidenciais na Ucrânia. Agora, aqueles que estão no poder farão tudo, depois o Ocidente os jogará fora e continuará a fazer o que achar necessário.

A este respeito, gostaria de recordar algo que Kiev agora prefere não mencionar, e o Ocidente também prefere não falar sobre isso. De que se trata? Em maio de 2014, o Tribunal Constitucional da Ucrânia decidiu que – passo a citar: "o Presidente é eleito por cinco anos, independentemente de ser eleito em eleições extraordinárias ou ordinárias". Além disso, o Tribunal Constitucional da Ucrânia assinalou que - mais uma citação - "o estatuto constitucional do Presidente não contém normas que estabeleçam um mandato diferente do de cinco anos". Fim de citação, ponto final. A decisão do Tribunal era definitiva e não passível de recurso. É tudo.

O que é que isso significa em relação à situação atual? O mandato presidencial e, portanto, a legitimidade do Chefe de Estado ucraniano expirou, não podendo ser restaurada por nenhum truque. Não vou falar em pormenor sobre o que esteve por detrás da decisão do Tribunal Constitucional da Ucrânia sobre o mandato presidencial. Evidentemente, deveu-se às tentativas de legitimar o golpe de Estado de 2014. Mas, apesar disso, esse veredicto existe e é um facto jurídico. Põe em causa todas as tentativas de justificar o atual espetáculo de anular as eleições.

De facto, a atual página trágica da história da Ucrânia começou com uma tomada de poder à força, como já referi, com um golpe de Estado anticonstitucional em 2014. Repito: na origem do atual regime de Kiev esteve um golpe de Estado armado. E agora o círculo está fechado - o poder executivo na Ucrânia está a ser novamente usurpado, como em 2014, e retido ilegalmente, sendo, de facto, ilegítimo.

Direi mais: a anulação das eleições mostra a verdadeira natureza do atual regime de Kiev que foi levado ao poder no golpe de Estado armado de 2014, as suas raízes estão lá. O facto de, depois de terem cancelado as eleições, eles continuarem agarrados ao poder significa que eles cometem ações expressamente proibidas pelo artigo 5.º da Constituição da Ucrânia. Passo a citar: "O direito de determinar e alterar a ordem constitucional na Ucrânia pertence exclusivamente ao povo e não pode ser usurpado pelo Estado, pelos seus órgãos ou titulares de cargo." Além disso, tais ações são abrangidas pelo artigo 109.º do Código Penal da Ucrânia, que se refere especificamente à mudança violenta ou derrubada da ordem constitucional ou à tomada do poder no país, bem como à conspiração para cometer tais ações.

Em 2014, a usurpação foi justificada pela revolução, e agora: pelas ações militares. Mas o significado disso não muda. Na realidade, trata-se de uma conspiração entre o poder executivo da Ucrânia, a liderança do parlamento do país e a maioria parlamentar por ela controlada, com o objetivo de usurpar o poder do Estado – não há outra palavra adequada para descrevê-lo – o que é um crime sob a lei ucraniana.

Além disso. A Constituição da Ucrânia não prevê a possibilidade de cancelar ou adiar as eleições do Presidente do país, ou a prorrogação dos seus poderes devido à lei marcial, ao que agora se refere. A Lei Fundamental da Ucrânia estipula a possibilidade de adiar, durante a lei marcial, as eleições legislativas, o artigo 83º da Constituição do país.

Assim, a legislação ucraniana prevê a única exceção quando os poderes de um órgão do poder estatal são alargados durante o período da lei marcial e não se realizam eleições. Este é o caso do parlamento do país. Assim a lei ucraniana define o estatuto do Parlamento da Ucrânia enquanto órgão em funcionamento permanente durante a lei marcial.

Por outras palavras, é o parlamento do país que é atualmente um órgão legítimo, ao contrário do poder executivo. A Ucrânia não é uma república presidencial, mas sim uma república parlamentar-presidencial. É esta a ideia principal.

Além disso, o Presidente do parlamento ucraniano, atuando na qualidade de Presidente da República, ao abrigo dos artigos 106º e 112º, fica investido de poderes especiais, incluindo na área de defesa, de segurança e de comando supremo das forças armadas. Está tudo ali escrito preto no branco.

A propósito, no primeiro semestre deste ano, a Ucrânia celebrou um pacote de acordos bilaterais de cooperação no domínio de segurança e de apoio a longo prazo com uma série de países europeus. Agora tem um acordo semelhante com os EUA.

Desde 21 de maio passado, é lógica a pergunta sobre a autoridade e legitimidade dos representantes ucranianos que assinam tais documentos. Como se costuma dizer, não nos interessa, eles podem assinar o que quiserem. É evidente que há aqui uma componente política e propagandística. Os EUA e os seus satélites querem apoiar, de alguma forma, os seus protegidos, dar-lhes peso e legitimidade.

No entanto, se, com o tempo, os EUA fizerem uma análise jurídica séria a esse acordo (não estou a falar da essência, mas da componente jurídica), ficarão com a pergunta: quem teve autoridade para assinar estes documentos? Verificar-se-á que tudo isto não passa de um bluff e que o acordo é nulo e sem efeito, e toda a construção cairá por terra, se, evidentemente, houver vontade de analisar esta situação. Podem fingir que tudo é normal, mas não há nada de normal ali, eu li. Tudo está escrito nos documentos, tudo está escrito na Constituição.

Gostaria de recordar que, após o início da operação militar especial, o Ocidente lançou uma campanha vigorosa e inescrupulosa para tentar isolar a Rússia no cenário internacional. Hoje é claro e óbvio para todos que a sua tentativa falhou, mas é claro que o Ocidente não desistiu do seu plano de construir uma espécie de coligação internacional antirrussa e de exercer pressão sobre a Rússia. Também compreendemos isso.

Como sabem, eles começaram a promover energicamente a iniciativa de realizar na Suíça uma chamada conferência internacional de alto nível sobre a paz na Ucrânia. Planeiam realizá-la imediatamente após a cimeira do G7, ou seja, o grupo daqueles que, de facto, desencadearam o conflito na Ucrânia devido às suas políticas. O que os organizadores da reunião na Suíça estão a propor é apenas mais um estratagema para desviar a atenção de todos, para trocar a causa e o efeito da crise ucraniana, para colocar a discussão no caminho errado e, em certa medida, para conferir uma aparência de legitimidade às atuais autoridades executivas da Ucrânia.

Por isso, é lógico que não sejam discutidas na Suíça questões verdadeiramente fundamentais que estão no cerne da atual crise de segurança e estabilidade internacional nem as verdadeiras raízes do conflito ucraniano, apesar de todas as tentativas de fazer com que a agenda da conferência pareça mais ou menos decente.

Podemos desde já esperar que tudo se reduza a declarações demagógicas gerais e a um novo conjunto de acusações contra a Rússia. A ideia está clara: atrair o maior número possível de países por todos os meios e, como resultado, apresentar o caso como se as prescrições e regras ocidentais fossem partilhadas por toda a comunidade internacional, o que significa que o nosso país as deve aceitar incondicionalmente.

Naturalmente, como sabem, não fomos convidados para a reunião na Suíça. De facto, não se trata de uma negociação, mas sim de um esforço de um grupo de países para continuar a impor a sua visão e resolver a seu critério questões que afetam diretamente os nossos interesses e a nossa segurança.

Gostaria de sublinhar a este respeito: sem a participação da Rússia, sem um diálogo honesto e responsável connosco, é impossível alcançar uma solução pacífica na Ucrânia e em matéria de segurança europeia global em geral.

Por enquanto, o Ocidente está a ignorar os nossos interesses, proibindo Kiev de negociar e exortando-nos hipocritamente a negociar. Parece uma idiotice: por um lado, estão proibidos de negociar connosco, enquanto, por outro lado, nos exortam a negociar e insinuam que nos recusamos a negociar. É um disparate. Parece que estamos a viver do outro lado do espelho.

Em primeiro lugar, deveriam dar a Kiev a ordem para levantar a proibição de negociações com a Rússia e, em segundo lugar, estamos prontos para negociar já amanhã. Compreendemos as peculiaridades da situação jurídica, mas há ali autoridades legítimas, de acordo com a Constituição, como acabei de dizer, e há pessoas com quem negociar. Por favor, estamos prontos. As nossas condições para iniciar essa conversa são simples e resumem-se ao seguinte.

Vou dedicar algum tempo a reproduzir toda a cadeia de acontecimentos para que fique claro que, para nós, o que vou dizer não é a conjuntura atual. Temos mantido sempre uma determinada posição, procurando sempre a paz.

Portanto, estas condições são muito simples. As tropas ucranianas devem ser retiradas completamente das Repúblicas Populares de Donetsk e de Lugansk, das Regiões de Kherson e de Zaporojie. Note-se, de todo o território destas regiões dentro das suas fronteiras administrativas, que existiam na altura da sua entrada na Ucrânia.

Assim que Kiev declarar que está pronta para tomar essa decisão e iniciar a retirada efetiva das suas tropas dessas regiões, bem como nos notificar de que abdica dos planos de adesão à NATO, neste mesmo instante, a nossa parte dará a ordem de cessar o fogo e de iniciar negociações. Repito: fá-lo-emos imediatamente. Naturalmente, ao mesmo tempo, garantiremos a retirada desimpedida e em segurança das unidades ucranianas.

Gostaríamos, evidentemente, de esperar que Kiev tome de forma independente a decisão sobre a retirada das suas tropas, sobre o não-alinhamento e sobre o início do diálogo com a Rússia, do qual depende a futura existência da Ucrânia, com base nas realidades atuais, orientando-se pelos genuínos interesses nacionais do povo ucraniano e não por ordens do Ocidente, embora tenhamos, evidentemente, grandes dúvidas a este respeito.

No entanto, o que é que eu quero dizer de novo a este respeito, o que é que eu quero recordar-vos? Eu disse que gostaria de rever a cronologia dos acontecimentos. Vamos dedicar algum tempo a isso.

Assim, durante os acontecimentos na Praça Maidan, em Kiev, nos anos 2013 e 2014, a Rússia se ofereceu repetidamente para ajudar na resolução constitucional da crise, organizada de facto a partir do estrangeiro.  Voltemos à cronologia dos acontecimentos do final de fevereiro de 2014.

A 18 de fevereiro, em Kiev começaram confrontos armados provocados pela oposição. Vários edifícios, incluindo a Câmara Municipal e a Casa dos Sindicatos, foram incendiados. A 20 de fevereiro, atiradores desconhecidos abriram fogo contra manifestantes e polícias, isto é, aqueles que estavam a preparar um golpe armado estavam a fazer tudo para empurrar a situação ainda mais para a violência e radicalizá-la, usando deliberadamente os manifestantes que estavam nas ruas de Kiev a expressar a sua insatisfação com o então governo para os seus próprios fins egoístas, como bucha de canhão. Hoje eles estão a fazer exatamente a mesma coisa, realizando mobilizações e enviando pessoas para a morte. No entanto, naquela altura, havia possibilidade de sair da situação de forma civilizada.

Sabe-se que, a 21 de fevereiro, foi assinado um acordo entre o então Presidente da Ucrânia e a oposição sobre a resolução da crise política. Os seus garantes, como é sabido, eram representantes oficiais da Alemanha, da Polónia e da França. O acordo previa a retomada da forma de governo parlamentar-presidencial, a realização de eleições presidenciais antecipadas, a formação de um governo de confiança nacional, a retirada das forças policiais do centro de Kiev e a entrega de armas pela oposição.

Devo acrescentar que o parlamento ucraniano aprovou uma lei especial para que os manifestantes não fossem perseguidos penalmente. Este acordo destinado a pôr termo à violência e a fazer voltar a situação à normalidade constitucional existia na realidade e foi assinado, embora tanto Kiev como o Ocidente prefiram não se lembrar disso.

Hoje, vou citar outro facto importante que ainda não foi divulgado. À mesma hora, literalmente, de 21 de fevereiro, tive uma conversa com o meu vis-a-vis norte-americano por iniciativa do lado norte-americano. A essência da conversa foi a seguinte: o líder norte-americano apoiou inequivocamente o acordo entre as autoridades e a oposição, tendo-o apelidado de um verdadeiro avanço, uma oportunidade para o povo ucraniano evitar que a violência eclodida passasse dos limites imagináveis.

Mais tarde, durante as nossas conversas, elaborámos em conjunto a seguinte fórmula: a Rússia tentaria persuadir o então Presidente da Ucrânia a comportar-se da forma mais contida possível, a não utilizar o exército e as forças policiais contra os manifestantes enquanto os EUA chamariam a oposição, como foi dito, à ordem e lhe pediria para desocupar os edifícios administrativos invadidos para acalmar a rua.

Tudo isto deveria criar condições para que a situação no país voltasse ao normal, à normalidade constitucional e legal. De modo geral, concordámos em trabalhar em conjunto em prol de uma Ucrânia estável, pacífica e com um desenvolvimento normal. Cumprimos a nossa palavra. O então Presidente da Ucrânia, Yanukovych,  não utilizou o exército (e não tencionava fazê-lo) e, além disso, retirou até unidades policiais adicionais de Kiev.

E os nossos colegas ocidentais? Na madrugada de 22 de fevereiro e durante todo o dia seguinte, quando o Presidente Yanukovych partiu para Kharkov, onde se iria realizar um congresso de deputados das regiões do sudeste da Ucrânia e da Crimeia, os extremistas, apesar de todos os acordos e garantias do Ocidente (tanto da Europa como, como acabei de dizer, dos Estados Unidos), tomaram à força o controlo do edifício do parlamento, do gabinete do Presidente e do governo. Nenhum dos garantes dos acordos de resolução política, nem os Estados Unidos nem os europeus, levantou um dedo para cumprir as suas obrigações, para apelar à oposição para que desocupasse os edifícios sede de órgãos de poder invadidos, para que renunciasse à violência. Ao que parece, este evoluir da situação não só lhes convinha como foi orquestrado por eles.

Já a 22 de fevereiro de 2014, o parlamento ucraniano adotou, em violação da Constituição da Ucrânia, uma resolução sobre a chamada auto-remoção do então Presidente Yanukovych do cargo de Presidente e marcou eleições extraordinárias para 25 de maio. Por outras palavras, o golpe de Estado armado, instigado a partir do estrangeiro, ocorreu. Os radicais ucranianos, com o consentimento tácito e o apoio direto do Ocidente, fizeram abortar todas as tentativas de resolver a situação politicamente.

A seguir, tentámos persuadimos Kiev e as capitais ocidentais a iniciarem um diálogo com a população do sudeste da Ucrânia e a respeitarem os seus interesses, direitos e liberdades. No entanto, o regime que subiu ao poder num golpe de Estado optou pela guerra e lançou ações punitivas contra o Donbass na primavera e no verão de 2014. A Rússia apelou mais uma vez à paz.

Fizemos tudo o que estava ao nosso alcance para resolver os problemas agudos no quadro dos acordos de Minsk, mas o Ocidente e o governo de Kiev, como já sublinhei, não os iam honrar. Em palavras, os nossos colegas ocidentais, incluindo o chefe da Casa Branca, garantiram-nos que os acordos de Minsk eram importantes e que eles estavam empenhados em contribuir para a sua implementação, porque isso, na sua opinião, permitiria resolver a situação na Ucrânia, estabilizá-la e ter em conta os interesses dos habitantes da região leste da Ucrânia. Em vez disso, na prática, organizaram um bloqueio, como já referi, do Donbass. As forças armadas ucranianas estavam a preparar-se para uma operação de grande envergadura para destruir as Repúblicas Populares de Donetsk e de Lugansk.

Os acordos de Minsk foram definitivamente enterrados pelo regime de Kiev e o Ocidente. Voltarei a este ponto mais uma vez. Foi por isso que, em 2022, a Rússia foi forçada a lançar uma operação militar especial para pôr fim à guerra no Donbass e proteger a sua população civil do genocídio.

Ao mesmo tempo, desde os primeiros dias, voltámos a apresentar opções para uma solução diplomática para a crise; já falei sobre isso hoje. Trata-se de negociações na Bielorrússia, na Turquia, da retirada das tropas de Kiev, a fim de criar condições para a assinatura dos acordos de Istambul, que, em princípio, foram acordados por todos. Mas estas nossas tentativas acabaram por ser novamente rejeitadas. O Ocidente e Kiev enveredaram pelo caminho de nos infligir uma derrota. Mas, como se sabe, as suas tentativas falharam.

Hoje estamos a fazer outra proposta de paz, concreta e realista. Se Kiev e as capitais ocidentais também a rejeitarem, como anteriormente, então, no fim de contas, será da sua conta, da sua responsabilidade política e moral continuar o derramamento de sangue. Obviamente, a situação no terreno e na linha de contacto continuará a mudar de forma desfavorável ao regime de Kiev. Portanto, as condições para o início das negociações serão diferentes.

Gostaria de sublinhar o ponto mais importante: a ideia principal da nossa proposta não é uma espécie de trégua ou cessar-fogo temporários, como pretende o Ocidente, a fim de repor as perdas, rearmar o regime de Kiev e prepará-lo para uma nova ofensiva. Repito: não se trata de congelar o conflito, mas sim de o levar a um fim definitivo.

Repito: assim que Kiev aceitar o evoluir da situação que está a ser proposto, retirar completamente as suas tropas das Repúblicas Populares de Donetsk e de Lugansk, das Regiões de Zaporojie e Kherson, e iniciar efetivamente este processo, estamos prontos para iniciar negociações sem demoras.

Repito: a nossa posição de princípio é a seguinte: o estatuto neutro, não-alinhado e não-nuclear da Ucrânia, a sua desmilitarização e desnazificação, especialmente porque estes parâmetros foram aceites por todos durante as conversações de Istambul em 2022. Lá tudo estava claro no que respeita à desmilitarização, tudo foi explicitado nos documentos: o número disto, daquilo e dos tanques. Tudo foi acordado.

É claro que os direitos, as liberdades e os interesses dos cidadãos de língua russa da Ucrânia devem ser plenamente garantidos, e as novas realidades territoriais e o estatuto da Crimeia, de Sebastopol, das Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk, das Regiões de Kherson e Zaporojie como unidades federadas da Federação da Rússia devem ser reconhecidos. No futuro, todas estas disposições básicas e fundamentais deverão ser fixadas em acordos internacionais fundamentais. Naturalmente, isto implica também o levantamento de todas as sanções ocidentais contra a Rússia.

Creio que a Rússia está a fazer uma proposta que permitirá pôr um fim efetivo à guerra na Ucrânia, ou seja, exortamos a virar a página trágica da história e a começar, embora isso seja difícil, gradualmente, passo a passo,  a reatar as relações de confiança e de boa vizinhança entre a Rússia e a Ucrânia e em toda a Europa.

Uma vez resolvida a crise ucraniana, nós, juntamente com os nossos parceiros da OTSC e da OCX, que estão a dar um contributo significativo e construtivo para a procura de uma solução pacífica para a crise ucraniana, bem como com os Estados ocidentais, incluindo os europeus, que estão prontos para o diálogo, poderíamos dar início à execução da tarefa fundamental que mencionei no início da minha intervenção, nomeadamente a criação de um sistema de segurança euro-asiática indivisível que tenha em conta os interesses de todos, sem exceção, os países do continente.

Evidentemente, um regresso às propostas de segurança que apresentámos há 25, 15 ou mesmo há dois anos é impossível, pois aconteceram demasiadas coisas e as circunstâncias mudaram. No entanto, os princípios básicos e, acima de tudo, o próprio objeto do diálogo permanecem inalterados. A Rússia está consciente da sua responsabilidade pela estabilidade mundial e reafirma a sua disponibilidade para dialogar com todos os países. Mas este diálogo não deve ser uma simulação do processo de paz para servir a vontade egoísta de alguém, os interesses mercantis de alguém, mas sim conversações circunstanciadas sobre todas as questões, sobre toda a gama de questões da segurança mundial.

Caros colegas, estou convencido de que estão bem cientes das tarefas de grande escala que a Rússia tem pela frente e do muito que temos de fazer, incluindo no domínio de política externa.

Desejo-vos sinceramente sucesso no seu difícil trabalho para garantir a segurança da Rússia, os nossos interesses nacionais, reforçar a posição do nosso país no mundo, promover os processos de integração e as relações bilaterais com os nossos parceiros.

Por seu lado, a direção do nosso país continuará a dar o apoio necessário à diplomacia, a todos os que estão envolvidos na implementação da política externa da Rússia.

Mais uma vez, obrigado pelo vosso trabalho, obrigado pela vossa paciência e atenção ao que foi dito. Estou convencido de que seremos bem-sucedidos.

Muito obrigado.

Serguei Lavrov: Excelentíssimo Senhor Vladimir Vladimirovich,

Muito obrigado pela sua avaliação do nosso trabalho. Estamos a fazer o nosso melhor. A vida obriga-nos a trabalhar ainda melhor. Fá-lo-emos. Todos compreendem que isso é necessário para o destino do nosso país, do nosso povo e, em certa medida, para o destino do mundo.

Iremos executar as instruções que agora Vossa Excelência expôs, detalhando o conceito de segurança euro-asiática, de uma forma muito concreta, juntamente com os nossos colegas de outros ministérios.

Contribuiremos para a resolução de situações de crise concretas, entre as quais a crise ucraniana é, sem dúvida, de importância prioritária para nós, no contexto da construção de um sistema de segurança novo, mais justo e indivisível, baseado nos mesmos princípios.

Utilizaremos a sua nova iniciativa nas mais diversas situações, incluindo no nosso trabalho no âmbito do BRICS, da OCX, com a República Popular da China, com os países da América Latina e de África, que também estão a apresentar as suas próprias iniciativas, mas que estão a ser ignoradas por aqueles que governam a Ucrânia.

Muito obrigado. Continuaremos a tentar trabalhar bem.

Außenministerium der Russischen Föderation
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